Graça Morais · 2011: A Caminhada do Medo


Graça Morais
2011: A Caminhada do Medo
desenho e pintura
20 de Outubro a 20 de Novembro

Série A Caminhada do Medo X | Pastel e carvão s/papel 150 x 111 cm 2011

Série A Caminhada do Medo IX | Pastel e carvão s/papel 150 x 111 cm 2011

Série A Caminhada do Medo V | Pastel e carvão s/papel 150 x 111 cm 2011

5. A ARTISTA EXILADA
Laura Castro1

Desengane-se aquele que lê o título como alusão a um exílio neo-romântico, refúgio campestre, fuga da cidade ao encontro da ruralidade poética e da autenticidade rústica porque não é isso que está em causa nem tão pouco o meio rural tem, na obra de Graça Morais, estas conotações. Se convoca a ancestralidade de certas práticas, fá-lo no confronto com a dureza e a austeridade do campo e, no núcleo de obras produzido na viragem do século, diante das transformações movidas por comunidades emigradas que não são imunes ao progresso.
Graça Morais vive, portanto, a sua condição de exilada no meio urbano. O desterro na cidade pode ser, hoje, mais silencioso do que o reduto aldeão onde, particularmente no Verão, a presença dos veraneantes intensifica o ruído, deixando a cidade mais calma. Mas desiluda-se também quem espera ver a temática urbana directamente vertida para o seu trabalho.
Desde há vários anos que a actividade de Graça Morais se divide pelos dois ateliers que mantém em Trás-os-Montes e em Lisboa e, apesar das dificuldades que essa repartição acarreta, em geral, há sempre trabalho iniciado num e noutro espaço. Por vezes, trabalho contrastante entre um registo mais delicado, em torno das temáticas florais e das ramagens primaveris, e um registo mais dramático e exigente dominado pela dimensão humana. Nem sempre os dois lugares de criação espelham dois circuitos paralelos, mas pode ser que tal confronto aconteça. Deste modo, a coesão temática e formal de cada série produzida pode corresponder a esta circunstância conjuntural, tal como responde a outras relacionadas com uma estação do ano, uma estadia particular, um acontecimento localizado e datado.
A série produzida em 2011, na altura em que este livro se encontrava em preparação, foi realizada no atelier de Lisboa e manifesta com total clareza a quantidade e a intensidade das imagens que permanentemente nos rodeiam e assaltam. Todos conhecemos o que é estar sob o impacto da avalanche de imagens de reportagem jornalística que invadem todos os meios de comunicação social e as novas plataformas de divulgação, internet, telemóveis, generalizadas através de um jornalismo popular que capta e difunde no mesmo momento.
Foi sob o efeito das fotografias publicadas em jornais e em revistas que os desenhos foram realizados. O uso dos recortes de jornais que ainda hoje subsiste vem da infância e da juventude, vem da tradição popular de forrar prateleiras com jornais decorativamente recortados, em padrões geométricos básicos, e do hábito de os ler nessa circunstância. Os bicos talhados na extremidade do papel de jornal inscrevem-se delicadamente nos desenhos de figura dos anos iniciais da sua carreira. O gosto pela utilização dos jornais manter-se-ia, não apenas nesse registo ornamental, mas como fonte insubstituível de imagens e como uma das vias de levar o quotidiano à pintura.
É ainda a temática da peregrinação que se vislumbra nestes trabalhos, mas agora trata-se das romagens de personagens condicionadas por acontecimentos históricos, os mais diversos.
Estas podem ser as peregrinações associadas aos dramas humanos das acostagens nocturnas no sul de Itália, dos africanos sedentos de um lugar na Europa, das lutas religiosas e tribais dispersas pela África e pela Ásia, das revoltas nos países árabes, dos massacres fanáticos disseminados um pouco por todo o mundo, dos conflitos urbanos mal identificados.
Este não é um mundo de abundância nem um mundo marcado pelo ritmo das estações, é um mundo que vive debaixo de um Inverno frio ou de um Verão árido que semeia carcaças de animais mortos e uma desolação traída por céus tempestuosos. Não é um mundo de abrigos domésticos, mas de vida desamparada no exterior onde todos estão expostos, desprotegidos, mal cobertos pelas mantas informes das organizações de assistência.
No seu exílio urbano a artista trata o êxodo humano nas suas múltiplas facetas. O desterro cumpre-se na cidade, a cidade é o seu atelier e o seu atelier é o mundo.
É inegável a dimensão política deste ciclo, componente que, ao contrário do que já se afirmou, nunca esteve ausente do trabalho de Graça Morais. Não num sentido panfletário ou contestatário, não num teor propagandista, mas na adesão a temas como a interioridade e o isolamento, a morte anunciada das aldeias, a solidão e a velhice no meio rural, a condição da mulher. Os acontecimentos históricos também não ficaram fora do seu horizonte artístico. De 1975 conhece-se a série de desenhos 25 de Abril, realizados com tinta-da-china e colagem, onde reproduções de fotografias, recortes de jornal e desenho se sobrepõem numa linguagem que muito fica a dever à intensidade comunicacional daquele período.
Estas peças vêm no seguimento do trabalho de Sines, de 2005, e de todas as séries das metamorfoses, da primeira década do século, mas a figuração envereda por outro caminho com aspectos tributários do ar do tempo. Os registos antropológicos do meio rural e os arquivos da memória dão lugar a figuras conturbadas do mundo contemporâneo, de paragens próximas e distantes. E, do ponto de vista do processo, há quase uma aproximação ao universo directo dos graffiti, dos gritos que ficam nos muros das cidades sem os cobrir completamente. A grande tela que mantém um carácter inacabado, com pouco desenho, é provavelmente o melhor exemplo. O desenho com duas personagens em fuga remete para o mesmo ambiente. A questão tinha sido já apontada por Eduardo Lourenço, noutro contexto: “Essa pintura, que mais parece relevar do graffiti ou da arte do fresco pela sua independência em relação ao suporte, como se pousasse apenas nele […]”2
Mas nem todos os trabalhos se orientam nesta direcção: há aqueles a que as cores quentes, o ar de tormenta, o preenchimento de toda a superfície conferem uma densidade e um peso que nos sobrecarregam. Há uma atmosfera espessa e sangrenta, um ar encorpado e táctil, envolvente, asfixiante, uma iluminação estranha de mau presságio.
Outros trabalhos prolongam o regime de transparências que a pintora tão bem domina, mas estes são em menor número.
Evidencia-se também uma linha de horizonte. Não é, no entanto, a habitual e essencial linha da paisagem que une o céu e a terra, é a linha que os separa e é nela que se encontram os peregrinos. Também se divisa o skyline de cidades nocturnas com personagens que se deslocam, apenas orientadas pela iluminação pública de postes com que a artista sinaliza a sua passagem, a sua fuga precipitada. (Interessante é recuar até uma obra de 1996 – Delmina – para percebermos como os modelos circulam de uma fase para outra: aí, o perfil de montanha, em fundo, recebia já personagens em gestos de trabalho).
As peças de menor dimensão, as colagens, dão a chave para os grandes desenhos e o modo como são compostos. Aí se percebe a importância do registo fotográfico, dos apontamentos escritos em folhas de diário e a sua recuperação posterior. Intervencionados e retrabalhados, esses materiais primários transformam-se mediante a pressão de novas circunstâncias: rostos de uma fotografia são cobertos por acrílico; personagens são modificadas mediante a adição de elementos animais; figuras fotografadas são refeitas em desenho; imagens são trancadas e bloqueadas sob uma mancha; papéis com fotografias coladas recebem escorrências de tinta-da-china e pingos de acrílico. Não são apenas reconfigurados os elementos compositivos pré-existentes, são os significados que sofrem uma reconstrução, predispondo-se a novas utilizações e interpretações.
É no espaço do desenho que se oferece a personagens heterogéneas e a factos desencontrados um plano de convivência, que não exactamente de convergência. Uma das estratégias plásticas que permite realizar a insólita conexão, é a mancha que, como uma auréola, rodeia grupos de personagens, estabelece uma situação específica mas mantém a transparência que a relaciona com os restantes protagonistas.
Quem povoa estas obras?
Deslocados de guerra, asilados políticos, nómadas famintos, perseguidos por questões religiosas, emigrantes clandestinos, uma legião de seres que vagueia perdida e sem outro destino que não o campo de refugiados improvisado.

É como num romance, ainda não sei bem o que as personagens vão fazer.
Posso deixar-me levar…
                                                                                                                                            Graça Morais

E aqui estão, primeiro, as criaturas do presente, recém-chegadas à sua obra: criaturas que deambulam ou avançam em fila, inseguras, reduzidas a vultos, a espectros, descarnadas pela condição de refugiados; soldados bem equipados de botas e capacetes, escudos e máscaras, armados; detidos; outros em pose de inspecção – suspeitos, radioactivos? É a comunidade internacional que faz e desfaz as catástrofes humanitárias – carrascos e vítimas; jornalistas e observadores (?); voluntários e agentes não-governamentais.
Aqui estão também as criaturas vindas do passado: figuras femininas de máscaras brancas com olhos fechados; ou de olhar atento e sobressaltado; mães auxiliadoras no rito da Pietà; um anjo; cabeças híbridas; e os cães vagabundos, rafeiros em pose de alerta ou de orelhas baixas e o olhar que nos fita, à espera.
Pensar que as personagens que chegam do passado poderiam ser um sinal reconfortante na perturbação geral é uma suposição que não se confirma, uma vez que o seu reino também é o da inquietação.
Na linguagem de Graça Morais, a visão do mundo não descarta a visão da sua obra, passado e presente confrontam-se, referentes de diversa natureza cruzam-se numa trama complexa.
Este é bem o nosso mundo, feito de realidades afastadas que nos chegam em simultâneo, numa sincronia enganadora. Valores e princípios têm, no seio dos conflitos que interessaram a artista, uma validade sempre provisória e contingente, ao sabor de circunstâncias políticas e de negociações de conveniência. As identidades são sempre transitórias – hoje num papel, amanhã no campo oposto; hoje como algoz, amanhã como mártir; hoje como personagem anónima, amanhã como figura da comunicação global. Não haveria melhor recurso artístico do que este mosaico de tempos e espaços em que se organizam os desenhos, para o demonstrar.
A artista permanece fiel ao mundo e fiel ao seu mundo.


Notas
1 Docente na Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa – Porto e membro do Centro de Investigação em Ciência e Tecnologias das Artes (CITAR) desta Escola.
2Eduardo Lourenço – In Pintura Portuguesa 1988. 10 de Junho. Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Apud Graça Morais. Lisboa: Soctip, 1992.

O presente texto é parte do livro Graça Morais. Ordem e Desordem do Mundo, em preparação e do catálogo da exposição 2011: A Caminhada do Medo.



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