Fim do Mito
Breve Auto sobre um quadro de Graça Morais
Antonio Tabucchi
Série A Caminhada do Medo VIII | Pastel e carvão s/papel 102 x 152 cm 2011
Prémio de Artes casino da Póvoa’2011
HOMEM QUE PARTE – Não mais voltarei a carregar-te nos meus ombros, Pai, como há tantos e tantos anos, quando, destruída pelo inimigo, deixámos para trás a nossa cidade em chamas. Era longo o caminho que então percorri, lembras-te? Pesavas nos meus ombros com a leveza de uma pluma, consumido pelos anos e as penas. Disseste-me depois que parasse, querias o repouso eterno, eu continuei a caminho do Ocidente, porque é no Ocidente da Terra que existe a esperança de uma nova civilização, o Fado assim o quis. Nada trouxe comigo, levava para o Ocidente o nosso Oriente, o Oriente donde vem tudo, o dia e a fé, o Oriente pomposo e fanático e quente, o Oriente onde – quem sabe? – Deus talvez exista realmente e mandando tudo... A tua candeia extinguira-se, e com ela o meu passado. Segui caminho levando o meu filho pela mão.
CORO – Apressa-te, o barco está prestes a zarpar, temos de levantar âncora, o tempo urge.
HOMEM QUE PARTE – Pai, tenho de partir, Ascânio já está a bordo.
CORO – Não saiba o teu filho que vais partir! Ignaro, dorme no chão ainda quente dos incêndios, não podemos levá-lo connosco: crianças, o Ocidente não as quer, aceita quando muito a força dos teus braços.
PAI (murmurando) – Por que não deu ninguém ouvidos a Cassandra?
CORO – Porque não há rebeldia contra o Fado, tentou-o Laocoonte, e os deuses enviaram duas serpentes marinhas que em seus anéis o estrangularam, e a seus filhos. Esses mesmos deuses que enviaram o cavalo com a barriga de fogo para destruir os nossos costumes e trazer-nos os seus, a que chamam democracia.
HOMEM QUE PARTE – A democracia deles são ruínas fumegantes, morte, desespero e cinzas, e de tudo isso hão-de sacar muito dinheiro, porque é negócio a guerra que fazem.
CORO – Vem, estulto homem pronto a partir, aproveita o nosso barco, não és nenhum herói, já não és um cidadão, nem sequer és um homem, és tão-só um migrante.
PAI – Tens de ir, Eneias.
CORO – Eneias foi seu nome em tempos, agora Anónimo é seu nome. Anónimo, tens acaso documentos que digam que és alguém?
HOMEM QUE PARTE – Pai, não voltarei a ver-te nunca mais?
PAI – Encontraste-me em tempos nos Campos Elísios, a Sibila conduziu-te ao reino do Hades. Com ela atravessaste o Estige e por três vezes abraçaste a minha sombra.
CORO – A Sibila morreu há muito, e o Hades fechou. Existe, sim, o fundo do Mediterrâneo onde apodrecem os cadáveres dos migrantes deserdados pela sorte.
PAI – E depois do terceiro abraço a minha sombra explicou-te a doutrina dos ciclos e dos renascimentos que rege o universo, e confortado com a minha explicação alcançaste a Itália, habitada por gente bárbara, e fundaste Roma, de cuja civilização nasceu a Europa.
CORO – Velho, nada ficou por fundar. Hoje, a Europa que nasceu da cidade fundada por teu filho já não quer intrusos, ferozmente coalizada, tem uma frota costeira que vigia os desembarques, afunda embarcações tão miseráveis como as nossas; essas criaturas outrora bárbaras enriqueceram, uns mais, outros menos, porque os pobres fazem falta aos ricos, e sem os pobres nunca os ricos seriam ricos. Mas os ricos que aí ordenam não querem gente mais pobre do que os seus pobres, para que a sua riqueza não se desvalorize e não se perturbe o equilíbrio entre os ricos e os pobres que sustenta a sua sociedade. Apressa-te a subir, pobre migrante, a passagem que te oferecemos, por nossa conta e risco, custa-te apenas dois mil dinheiros, na moeda actual exactamente o mesmo que um habitante itálico pagava para apanhar o vapor para as Américas, um habitante das Germânias para fugir para a Argentina, um lusitano para dar o salto. E hoje, quando cada um deles se encontra bem defendido nas fronteiras de um espaço comum, é difícil forçar as portas de Schengen. Eles desembarcaram na Lua e os astros não opuseram resistência. Mas é proibido desembarcar nas margens da Fortaleza de Schengen.
HOMEM QUE PARTE – E o nosso Mito, Pai?
PAI – Não sei.
CORO – Em tempos, o Mito era o nada que é tudo. Hoje, é apenas o nada. Partamos.
Isto diziam, sem o dizerem, as figuras de um quadro de uma pintora portuguesa numa luminosa tarde do Verão de 2011, em Lisboa, numa casa antiga da Costa do Castelo. Ao contemplá-lo, ouvi as suas vozes e, tal como as ouvi, agora as transformo em escrita, sem nada acrescentar.
Antonio Tabucchi
[in Catálogo da Exposição Graça Morais · 2011: A Caminhada do Medo]
Tradução do texto "FINE DEL MITO · Piccolo intermezzo su un quadro di Graça Morais" por Gaëtan Martins de Oliveira
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