Portugueses nos confins da Rússia por Guilherme d'Oliveira Martins

Expedição. Começou em Cracóvia, e passou por Moscovo e Sampetersburgo, a embaixada cultural ?Os Portugueses ao Encontro da sua História', promovida pelo Centro Nacional de Cultura. O presidente da instituição, Guilherme d'Oliveira Martins, conta aos leitores do DN como foi a experiência

O jovem Damião de Góis, em missão diplomática no tempo de D. João III, em 1523, não se apercebeu, por certo, da extraordinária revolução que estava a operar-se na cidade de Cracóvia, capital do reino polaco, com a hipótese de Copérnico sobre o movimento da terra. Cracóvia é uma cidade acolhedora, com pessoas afáveis e hospitaleiras. Aqui começou este ano a embaixada cultural do Centro Nacional de Cultura "Os Portugueses ao Encontro da sua História". Um grande amigo, Jacek Wosniakowski, companheiro do cardeal Woytila, primeiro Presidente da Câmara depois de 1989, ensinou-me a ter uma especial ternura pela cidade. Não pude vê-lo, mas estive na "sua" Villa Decius, com Danuta Glondys, recordando os seus ensinamentos.

A cidade plana aconselha as caminhadas. Depois de descermos do Castelo de Wawel, encontramo-nos na Rua dos Cónegos. Pela tarde os turistas acotovelam-se e têm de se afastar à passagem das carruagens puxadas a cavalos. Passamos pela igreja jesuítica de S. Pedro e S. Paulo, por Santo André, e chegamos a Rynek Glówny, a maior praça europeia com o velho mercado de panos ao centro e a Basílica de Maria Santíssima (Mariacki), construída pelos burgueses da cidade, com duas torres, onde de hora a hora soa um toque de clarim. Se a Catedral em Wawel invoca a monarquia, a Basílica proclama a importância do burgo e dos seus comerciantes: nartex barroco, vitrais do século XIV, intervenções de estilo Sacro Império, decoração arte nova. Os estilos misturam-se, mas todas as atenções vão para a extraordinária obra de Veit Stoss, o maior retábulo gótico existente na Europa, realizado entre 1477 e 1489, em madeira de carvalho e tília - que representa a Dormição, a Assunção e a Coroação de Maria. As cinco máquinas retabulares constituem o fulcro dos altares-mores. E o movimento dos apóstolos parece dever-se à visão simultânea que têm de vários tempos, o dos céus e o da terra, ao modo de Santo Agostinho.

O cosmopolitismo de Cracóvia é marcante. Objectos e memórias associam-se. O astrolábio árabe de 1054; a Biblioteca do Collegium Maius; a referência de Justus Decius, secretário do rei Segismundo e amigo de Desidério Erasmo e de Martinho Lutero; os ensinamentos do rabino Mojzesz Isserles (Remuh); o mecenato dos Czartoryski (a quem se deve o Museu de Arte, onde vimos a Dama do Arminho de Leonardo e "Paisagem com samaritano" de Rembrandt); a poesia de Adam Mickiewicz; as sinagogas do bairro judeu de Kazimierz de raízes antiquíssimas (desde o século X e depois do século XV com a chegada dos sefarditas peninsulares), a presença bem próxima do papa João Paulo II - tudo isso pudemos recordar, calcorreando as ruas da cidade e gozando as margens verdes do Vístula.

Chegados a Moscovo

Entrados no Hotel Metropol, ingressamos num mundo outro. O Metropol foi um dos estabelecimentos que albergaram, após a revolução, numa cidade já esquecida de ter sido capital, o Governo bolchevique de Lenine. A criação do burgo deveu-se no século XII à iniciativa de Yuri Dolgoruki, filho do grão-duque de Kiev, Vladimir Monomarkh, e as fortificações do Kremlin na colina de Borovitskii datam do século XVI. O calor do Sul da Polónia cedeu lugar a um tempo instável nesses primeiros dias de Setembro. Depois de uma refeição acolhedora, na monumental sala de jantar do hotel, passeámos nas imediações da Praça Vermelha e em frente ao Teatro Bolshoi.

Render da guarda

Junto ao túmulo do soldado desconhecido, o sol espreita timidamente, entre as nuvens. O Kremlin de Moscovo é o símbolo do império e está associado a Ivan, o Terrível (1530-1585), que a guia, cuidadosamente, designa como temível, como mandam as boas regras. Ao visitarmos a Catedral das Coroações ou da Dormição da Virgem, deparamos com o esplendor da arte russa tradicional. Grupos de visitantes de todo o mundo cruzam-se. Ícones representam mais de cem santos. Sentimos a força da Terceira Roma, que sucede a Roma e a Constantinopla, como projecto eterno, como a Terceira Idade de Joaquim de Flora. O iconostase (que nos separa do altar) apresenta cinco níveis - o do Antigo Testamento, com Patriarcas e Profetas; o dos Apóstolos; o da Paixão de Cristo; o da Deesis (em torno da glorificação do Cristo Pantocrator e da Virgem Hodegetria, que indica a via libertadora ao apontar para Seu Filho); e, por fim, o dos ícones locais. As três catedrais do Kremlin de Moscovo representam, no papel que tiveram ao longo dos tempos, a sucessão dos ritos da vida: a da Anunciação como local dos casamentos e baptizados da família imperial, a da Dormição da Virgem para as coroações e a de S. Miguel Arcanjo para o rito da morte.

Graça Morais realizou os painéis de azulejos de uma das entradas da estação do metro de Bielorusskaya, uma das mais importantes e emblemáticas da rede que foi concebida em termos monumentais, num estilo neo-clássico e realista. Rostos de gente comum, de uma beleza e de uma simplicidade tocantes, contrastam com as representações dos operários e dos camponeses, dos soldados e dos marinheiros e as estátuas épicas. Há um apelo à humanidade de uma cidade diferente, de pessoas concretas. Se somos transportados na mítica estação, numa viagem histórica, à cidade de Estaline, com a obra da pintora portuguesa, tomamos contacto com a modernidade e o cosmopolitismo. Depois de homenagearmos Graça Morais, dedicámo--nos à Galeria Tretyakova, onde podemos usufruir da arte russa desde o século XII ao século passado. A colecção é um deslumbramento, sinal de uma cultura riquíssima. António Quadros em Uma Visita à Rússia - Impressões e Reflexões (Lisboa, 1969) afirma recordar "as multidões sorumbáticas e caladas (…). Recordo os sonhos, as aspirações, as exaltações, as euforias e a animação dialéctica dos livros de Gogol, Dostoievsky, Tolstoi ou Tchekov. Total desfasagem. No entanto, o povo russo sabe recolher-se nostalgicamente na sua ducha (a alma individual), faz sentir o seu espírito religioso nas tão belas melodias folclóricas que continua a cantar". À distância, o ensaísta soube captar o essencial de uma sociedade apta a renascer. A pujança artística, a criação literária e filosófica, a capacidade de olhar o que é realmente importante são evidentes, como vimos no Museu Pushkin, pela clarividência dos grandes coleccionadores de há um século (Shchukin e Morozov, que apoiaram as novas tendências da melhor arte europeia, até Matisse e Picasso). Ao sair de Moscovo, passamos pela casa de Morozov - surpreendente homenagem ao Portugal romântico e revivalista do neo-manuelino e de Monserrate… Levamos a recordação duma cidade movimentada, que nestes dias era o centro das notícias do mundo, pela crise da Geórgia e pela afirmação do Governo russo. Mas isso não impediu que o embaixador Manuel Marcelo Curto, apesar das preocupações, pudesse apoiar-nos com grande simpatia e hospitalidade. Lembrámos Jaime Batalha Reis, amigo de Antero, que nos representou na corte imperial e perante o governo revolucionário de 1917. E não esquecemos Jaime Magalhães de Lima, que visitou o seu mestre Tolstoi, relatando em Cidades e Paisagens (Porto, 1889) esse encontro memorável.

Rumamos a Sampetersburgo

É uma cidade espectacular. Foi construída por Pedro, o Grande, com um duplo objectivo: aproximar o povo russo da Europa e do cosmopolitismo e impressionar como capital de um império de tipo novo. O centro histórico, as margens do Neva, os canais, os monumentos, os palácios, a Nevski Prospect, o Ermitage, o forte de S. Pedro e S. Paulo, a flecha do Almirantado, a cúpula de Santo Isaac, o fantástico Museu Russo, no Palácio Mika-hilovski, a Catedral do Sangue Derramado - tudo nos acolhe com magnanimidade. E no rasto da presença portuguesa, andámos sempre com o precioso livro de Rómulo de Carvalho Relações entre Portugal e a Rússia no Século XVIII (Sá da Costa, 1979) nas mãos, fonte inesgotável de informações. Começámos por lembrar António Manuel Luís Vieira, amigo de Pedro, o Grande, que este conheceu em Londres e que foi general-ajudante às ordens e chefe da Polícia de Sampetersburgo. No entanto, o conde Vieira caiu em desgraça depois da morte do czar, tendo sido deportado para a Sibéria, onde faleceu. A grande referência é, porém, António Ribeiro Sanches, que esteve durante dezasseis anos na corte (até 1747) com funções médicas muito relevantes e com influência decisiva nos domínios científico e educativo. Quando Catarina II subiu ao trono, já Sanches estava em Paris, a czarina atribuiu-lhe uma tença de mil rublos e designou-o seu conselheiro, tendo-lhe solicitado pareceres fundamentais nos domínios educativo e científico. No teatro do Ermitage, recordámos Luísa Todi que aí cantou para Catarina II de 1784 e 1788, que, encantada, a presenteou com uma fabulosa colecção de jóias que viria a perder-se no desastre da Ponte das Barcas (1809). E temos de referir ainda Juliana Luísa de Oyenhausen (1782-1864), filha da marquesa de Alorna, que casou em 1828 com Grigory Stroganov e viveu no mais célebre dos palácios da Avenida Nevski.

Um dia inteiro no Ermitage, o Palácio de Inverno, é pouco, mas é uma experiência única. É a obra-prima do arquitecto Rastrelli. Aqui está o fundamental da arte europeia: Leonardo, Rafael, Caravaggio, Belotto, Velásquez, a maior colecção de Rembrandt, que inclui O Filho Pródigo, até Cezanne, Picasso e Matisse. Uma colecção fantástica de artes decorativas, jóias, artefactos, antiguidades, tudo… Mas ver Sampetersburgo, sentir a sua grandeza mítica, é visitar ainda, como fizemos, o Palácio de Verão de Catarina, o Palácio de Pedro (Peterhof) e o Palácio de Paulo (Paulovsk), que prolongam em registos diversos a ambiência de um setecentismo fulgurante, barroco, neo-clássico. E quando fomos a Novgorod, cidade do século X, uma das matrizes da cultura russa, com a catedral bizantina de Santa Sofia, sentimos confronto, contraste e ligação entre o Oriente e o Ocidente.

Diário de Notícias

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