Na Rota Do Sagrado - Entrevista Graça Morais

Por Ana Marques Gastão


Graça Morais. Oito telas a óleo e 23 desenhos (dois de grande formato) e colagens integram a exposição de inéditos que Graça Morais inaugura, hoje, às 18.30, na Galeria DN, em Lisboa. A mostra ficará patente até 8 de Novembro, seguindo depois para a Galeria JN no Porto

A terra esteve sempre presente na sua obra. É como se ela se tivesse tornado nestes trabalhos hiper- - real e mais angustiada...

Talvez porque a morte se dê a ver de uma forma mais densa. Pinto em grande inquietação. Quanto mais envelheço, mais tenho a sensação de que a terra nos dá a vida e a morte. O tempo é limitado. Tenho vindo a isolar-me, sobretudo em Trás-os-Montes, desde que fiz 60 anos. Vivemos num planeta pequeno, invadido pela globalização, onde somos obrigados a ter uma imensa força, insuficiente para a nossa tão grande fragilidade. A fragilidade assusta, mete medo. Sentimo-la na solidão, na doença, nos cataclismos ambientais, numa ética que deixou de o ser e que coloca novas questões à Humanidade e, por sua vez, à arte.

É como se nestas imagens a terra suportasse um peso imenso?

O Céu é pesado, ameaçador. Represento-o assim, muito realista, num quadro onde se vêem uma batata em putrefacção que é o tempo, a passagem dos dias, a vida que se degrada. Ao lado, visualiza-se uma criança de cera - das promessas religiosas -, um açucareiro, que era da minha avó paterna, e um homem fardado, figura ameaçadora sem nome. Estes quadros são fragmentários e resultam de um grande isolamento. Gostaria que a minha pintura revelasse ideias, sensações da minha experiência do mundo.

Talvez por isso, surja a colagem em alguns destes quadros?

Sim, vou combinando fragmentos que têm a ver com a representação do rosto, da máscara, dos elementos vegetais e de figuras que são o resultado de imagens de catástrofes que recupero das primeiras páginas dos jornais. Pergunto-me porquê estas e não outras, uma vez que são iguais em todo mundo? Será da globalização, mas são aquelas que querem que vejamos.

Prosseguiu, de um modo mais denso, o diálogo entre sagrado e profano já presente na sua obra?

Mais do que qualquer outra anterior, esta pintura é religiosa. De alguma forma, contém a minha verdade interior e, nesse sentido, dir-se-ia intimista. Parte do meu mundo, de figuras que me são familiares como a minha mãe, e nela as cores tornam-se ideias, símbolos. Em Agosto, estive na Rússia, em Moscovo, em São Petersburgo, e na Polónia, em Cracóvia, a convite de Guilherme d'Oliveira Martins, presidente do Centro Nacional de Cultura. Nessa viagem - em que vi a minha participação em painéis de azulejo na estação Bielorússia do Metro de Moscovo - compreendi o significado dos meus quadros quando entrei nas igrejas ortodoxas e ouvi os cânticos.

Mas é algo que não encontra nas igrejas católicas romanas?

Para aliciar os jovens, na minha opinião, banalizaram-se muito os rituais. Nas igrejas ortodoxas que visitei, sobretudo, em São Petersburgo, encontrei uma outra solenidade, uma outra interioridade. Digamos que comecei este caminho há muito, mas estou numa fase de maior meditação. Foi um encontro com os meus quadros.

Está a falar também de Deus?

Não necessariamente. Ou melhor, estou a falar de uma dimensão que nos ultrapassa enquanto seres humanos; de um sentimento muito especial, imensamente profundo. Algo que sinto no meio do corpo e que fica em sintonia com a totalidade do universo, com o divino. Encontrei Deus numa igreja ortodoxa na Rússia, mas não em Fátima, onde estive quando um irmão meu teve um cancro e quis lá ir. A missa foi interrompida de uma forma brutal, o padre não tinha espírito religioso, as pessoas falavam alto e o lado mercantil chocou-me. Sinto, por outro lado, que os artistas têm um mundo espiritual que a Igreja negligenciou no século XX, o que a empobreceu. Sou crente, mas sinto-me desintegrada.

Vemos, nestes quadros, a escrita diarística a fundir-se com a pintura em diálogo com a sua mãe...

Sem pretensões literárias, vou escrevendo apontamentos, notas, desabafos, explosões sobre o quotidiano, alegrias, tristezas, e insiro-os na pintura. A palavra pode ser mais importante do que a imagem. Também ela é imagem. Este Verão, em Trás-os-Montes - onde estive a fazer estes quadros -, visitava todos os dias a minha mãe ao fim da tarde. A essa hora, há uma linha indefinida entre os céus e as montanhas e luz torna-se mágica. Enquanto caminhava, ia ganhando consciência de que aquela era uma viagem em direcção do sagrado.

A Terra é mãe. E a sua mãe...

...é o símbolo da Terra. Da terra vimos e para a terra vamos. Por isso quando chegava a Vieiro, o que fazíamos era ir ver a horta. A minha mãe, a Maria e eu ficávamos a observar o crescimento das plantas, dos tomates, das abóboras... Talvez por ter vivido essa experiência, eu ache que todas as escolas primárias e lares da terceira idade deveriam ter hortas e jardins. As pessoas do povo estão nesses espaços à espera de morrer e dizem: "Estou à espera que Ela venha." Ela é a morte. Se estivessem mais próximas da natureza, compreenderiam o quanto podem ajudar a que ela se renove.

Têm uma relação maternal com a Terra essas mulheres?

Ainda que por vezes não tenham consciência disso, a relação com o semear e o colher é de um grande amor. Para mim, nesses momentos, o universo ganha sentido. A paisagem que deixei para trás, aquele mistério culmina no encontro com a minha mãe. Tão simples e tão profundo, não é? Por isso, em mais do que um quadro nesta exposição, ponho as mulheres a segredarem. Elas são sábias, contam segredos, sussurram, e eu cubro-as de flores coloridas. Foram curandeiras ao longo dos tempos, parteiras, conhecem bem a terra, possuem a sabedoria das plantas...

Pintou um rosto de mulher envolto numa couve. Parece uma flor!

É mais um embrião de flor. Estou sempre a observar couves no campo, têm formas incríveis, Hei-de fazer uma série só de couves (risos). São pujantes, sobretudo as grandes. Descobri imensas coisas nestes meus passeios de Verão. Ao entardecer, era inquietante ouvir o vento a bater nas canas de milho. Às vezes, assustava-me. Pressentia presenças humanas ou espíritos. Como se natureza ganhasse dimensão humana. Tenho o atelier cheio delas agora; o meu irmão Cristiano traz-mas. Estão abertas, desesperadas, tortas. O que me interessa não é pintá-las no lugar onde estão, mas transformá-las. Não gosto de as retirar do seu meio-ambiente que é harmonioso. Reintegro-as na minha realidade. Represento-as de outra forma, por vezes incompreensível.

A metamorfose marca a sua obra que transforma os seres humanos em pássaros, flores... Uma sabedoria que vem dos antigos?

A metamorfose é a transformação que o tempo dá à matéria.

Palavras como fecundidade e fertilidade, vida e morte, queda e renascimento atravessam a exposição?

Há sempre uma luz, ainda que esta pintura seja sentida, triste, densa.

Diário de Notícias

3 comentários:

  1. Joana obrigado pelo convite enviado para a inauguração mas não pude comparecer. Dia de S. Carlos a assistir a outra grande forma de arte! Mas de qualquer forma já
    passei na galeria do DN para me deliciar com os mais recentes trabalhos artísticos de Graça Morais. Valeu bem a ida! São momentos sempre tão envolventes e marcantes os contactos visuais com a pintura e desenho da Graça. Essas alturas são SAGRADAS para mim! Beijinho

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  2. Vou esperar que venha para o Porto.
    Entretanto fui ao Lugar do Desenho, à exposição que a Graça Morais inaugurou.
    Se lhe interessar publiquei algumas fotos no meu blog.
    Quanto aos quadros, belissimos, como sempre.

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  3. devia ter também o nome da obra!

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