Respiração suspensa por Manuel António Pina



Respiração suspensa

"Não é sem um tremor que o homem ousa olhar um rosto, pois este existe, antes de tudo, para ser olhado por Deus". Max Picard, Le visage humain

Portas para o invisível, os rostos que nos olham nestas pinturas, mesmo quando os seus olhos nos evitam ou nos ignoram, fecham-nos algo irremediável e inominável. Mais do que rostos, são antes máscaras, "êxtases imóveis" em que se inscrevem mundos interiores onde não nos é dado alcançar. Também a pintura é uma máscara, e também ela desamparada. Também ela, quando desvela, oculta. Porque a pintura vê mas não sabe (e como poderia ela saber?).

A pintura de Graça Morais sempre perscrutou rostos, a sua linguagem silenciosa. Como nenhuma outra pintura portuguesa contemporânea, o acto de pintar é, em Graça Morais, fundamentalmente um acto de paciente amor, pois que, como escreve Max Picard, "só na atmosfera do amor um rosto humano se conserva como Deus o criou, como imagem sua". Que esses rostos sejam obsessivamente rostos de mulheres permite talvez (mas que sei eu?) vislumbrar o sentido inquieto da sua pintura, re-ligando (pois suspeito que há por aqui algo de fundamente religioso) anima e espírito, sentimento e razão, tempo e eternidade, existência e transcendência.

Um grande luto (sob todas as suas formas, as da morte como as da vida), uma dor muda, cobrem agora como um véu rostos macerados pela usura dos dias. Mesmo os olhos, singularmente poupados, nos desenhos, à brutalidade gestual da pintura, olham cegamente para dentro, mais do que para fora e, se nos fitam, parecem ver para lá de nós. A pintura de Graça Morais é aqui, provavelmente mais do que nunca (repito: mas que sei eu?), uma arte de silêncios, de lábios fechados, do pudor da palavra dita. Num dos quadros, uma mão tapa a boca reprimindo um grito; noutro, um ramo de flores protege um segredo apenas murmurado; noutro ainda, as flores ocultam inutilmente a evidência da morte. As próprias cores (castanhos, rubros, negros), densas e sólidas, às vezes expressionistas, como, do mesmo modo, a matéria simbólica presente na decomposição e metamorfose dos corpos, parecem querer obstar a qualquer ruído (há quem julgue que a pintura não tem som, mas o que há mais para aí é pintura barulhenta) de representação para além do processo figurativo.

Porque também a pintura é usura. Também ela, pelo menos esta, olha para dentro de si. E o que vê, suspendendo a respiração, é tempo, memória (incluindo, inevitavelmente, a memória da própria pintura), murmúrios, fragmentos. Do lado de lá da morte, a Eternidade (não aparece ela paradamente a Daniel sob a forma de velho?) deve ser, acho eu, assim.

Porto, 24/09/08
Manuel António Pina

in Catálogo " Graça Morais, Pinturas e Desenhos 2008"

2 comentários:

  1. Te dejo un saludo y me llevo alguna pintura. ¡¡maravillosas!!


    Paz


    pacobailacoach.blogspot.com

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  2. Joana,

    Apologies. for my lack of Portuguese. This painting is so striking. It speaks directly to the heart. Thank you for introducing me to the work of Graça Morais.

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