Graça Morais | Jorge Amaral/Global Imagens
Entrevista por Mariana Pereira
"O Rosto do Medo", que inaugura hoje na galeria Ratton, mostra as figuras dos nossos dias a caírem e a levantarem-se. A gente comum, os que a crise abalou, os refugiados, as mulheres maltratadas
Onde começa uma exposição como O Rosto do Medo? Com um desenho, uma ideia, uma fixação?
Comecei a fazer estes desenhos, os mais pequenos, no verão de 2015. Fi-los porque estava a precisar muito de os fazer. Foi uma altura em que eu estava a viver uma situação muito difícil, estava com pessoas muito perto de mim, familiares, muito doentes; e ao mesmo tempo via e lia todos os dias notícias sobre os refugiados. Houve um conjunto de situações que me angustiaram muito. Tive necessidade de as escrever, de as desenhar, e sobretudo de as pintar.
Encontrou uma afinidade maior entre estas situações tão díspares: acompanhar alguém doente, e ter de deixar tudo para trás?
Eu acho que o sofrimento pessoal torna-se num sofrimento universal quando estamos em sintonia com o que se passa à nossa volta. Estes não são desenhos ilustrativos, mas são imagens de rostos em sofrimento, de angústia, e alguns de verdadeiro medo. Quando estamos a viver situações muito dolorosas entendemos melhor a situação de outros seres humanos. Quando as coisas todas correm bem, às vezes tornamo-nos egoístas. Às vezes tendemos a tapar a cara e não ver.
Como naqueles seus dois quadros em que a mulher tapa metade da cara com a mão.
Quando nós temos consciência das situações, ainda só tapamos metade da cara. Quando estou em casa, a ver o telejornal, acontece-me estar a comer, parar e dizer: "Que horror, a que é que estou a assistir?" Mas tornamo-nos insensíveis e continuamos a comer. Essa imagem de tapar só meia cara é a imagem de ver com um olho e com o outro esquecer o que se está a ver.
No momento de pintar não há mãos a tapar?
Não. O momento de pintar é de grande lucidez e de grande relação com o mistério. Isto é o meu testemunho durante os últimos meses do ano passado, e deste ano. O país estava a viver uma austeridade terrível. Todos nós sofremos. O que eu sentia era que à minha volta havia uma tristeza colectiva. Neste momento, felizmente, acho que estamos a viver um período de maior optimismo, maior esperança.
Estes quadros parecem trazer ainda a violência que provoca o sofrimento ou o medo. É assim?
Sobretudo a violência naquelas figuras de mulheres. No ano passado, abríamos os jornais, as televisões, e houve um período trágico, muitas mulheres no nosso país foram maltratadas e assassinadas.
Há ali uma mulher de cabeça baixa, com asas.
Sim, que está a chorar. Os anjos também choram. Nós vivemos rodeados de pessoas que são anjos e outras que são verdadeiros diabos.
As mãos vermelhas num dos quadros são de vítima ou de agressor?
Aquelas mãos são mãos de uma vítima. Nem tudo aparece de forma consciente. Quando desenho ou pinto obedeço a uma necessidade muito forte, mas não sei explicar tudo o que faço.
Estas figuras vêm-lhe do que viu em Trás os Montes, ao crescer?
Estas três figuras que estão ali são mulheres do mundo rural. E são mulheres que, ao longo da minha vida - e agora começo a ter quase a idade delas -, viveram uma vida com uma grande resignação, mas também com um grande sofrimento. O modelo de virtude delas era a figura da Mater Dolorosa, a mãe de Jesus. São mulheres muito pacificadas, não revoltadas.
Via-as na rua e sabia o que se passava nas suas casas?
Vi-as na rua e na luta que elas faziam. A grande concentração dos sentimentos delas é em relação aos filhos, o prolongamento delas próprias, e pelos filhos elas fazem todos os sacrifícios.
Sendo mulher, como se está, por um lado, com um pé na vida e, por outro, na distância suficiente para representar tudo isso?
Acho que nós, as mulheres, porque somos mães, e sabemos gerar um ser humano, conseguimos estar profundamente ligadas ao universo através de um ser humano, que são os nossos filhos, mas também de outras pessoas que sentimos como se nos pertencessem. Nestas situações de grandes dramas, repare que quem vem muitas vezes para a frente revoltada e a falar é a mulher. As mulheres gritam, são corajosas, os homens são corajosos de outra maneira. Mas a mulher tem o coração junto da boca.
Pinta com o coração na boca?
Pinto com o coração na mão e na cabeça.
E então o que tem a dizer fica dito.
Sim. Não sei explicar por que é que chego a uma altura e digo: Não consigo fazer mais e já fiz o melhor que pude. Parece que é um anjo que me pega na mão e diz: Agora já chega, já acabaste. Quando estou a pintar estou sempre a interrogar-me sobre o que estou a fazer. Há um momento em que a interrogação tem respostas certas.
Está em paz com esta mostra?
Estou. Quando nós fazemos, em consciência, as coisas bem feitas, ou somos úteis, ou fazemos o melhor que podemos, isso dá uma paz muito grande. Tento mostrar que não sou cúmplice em relação a certas situações, que estou atenta. Ao mesmo tempo, é uma necessidade profunda.
in Diário de Notícias, 19 de Maio de 2016